O conhecimento humano, grosso modo, é sustentado por duas
categorias: as "impressões"
(que são os dados fornecidos pelos sentidos e que podem ser tanto internos,
como, por exemplo, a percepção de um estado de tristeza, quanto externos, como
a visão de uma paisagem) e as "ideias"
(que são as representações da memória das impressões).
O que temos de mais vívido em nossas mentes são as
impressões dos sentidos no momento em que ocorrem, isto é, aquilo que vemos,
aquilo que ouvimos, e tudo aquilo que os sentidos produzem em nós. São os
prazeres e as dores. As ideias são reproduções, são cópias das impressões. Se eu
penso no sabor da maçã, essa ideia não é tão forte quanto saborear a maçã e ter
a "impressão" viva do seu sabor.
Não existem impressões complexas... quanto às ideias,
existem as simples e as complexas. Nossa ideia de uma maçã é uma ideia complexa,
cujas ideias simples são o vermelho, a textura, o sabor doce, etc. A ideia do
triângulo plano, por exemplo, inclui a igualdade dos seus ângulos internos a
dois ângulos retos, e a ideia de movimento contem as ideias de espaço e tempo,
não importando se realmente existem tais coisas como triângulos e movimentos. Pelas
pesquisas médicas mais recentes, ao que tudo indica, cegos e surdos de nascença
não possuiriam esses caracteres, ou seja, não teriam ideias correspondentes às
cores ou aos sons.
De onde se pode concluir que as coisas não seriam, pois,
possuidoras de uma essência, mas cada coisa é composta de outras coisas. Quando
examinamos nossa ideia de uma coisa individual, tudo que encontramos são as ideias
simples que se juntam para formar uma ideia complexa. Tomando, por exemplo,
duas maçãs, uma é mais vermelha que a outra, uma está mais próxima de mim...
provando as duas uma é doce, a outra menos, maior e menor, etc. Isto
equivaleria a dizer que o homem não cria qualquer ideia. Se uma ideia, ou sua “representação” (a palavra) não
corresponder diretamente a uma impressão ela só terá significado se trouxer à
mente um objeto que pode ser apreendido de uma impressão por um processo mental
associativo.
As matérias “de fato”,
as impressões, vêm ante nós meramente como elas são, não revelando nenhuma
relação lógica... suas propriedades e conexões tem que ser aceitas como elas
são dadas. As impressões correspondentes aos fatos concretos não tem relações
lógicas, portanto. Poderiam ser diferentes do que são sem que houvesse
contradição. As ideias, no entanto, podem ser retidas perante a mente
simplesmente como significados, e suas relações lógicas, uma com a outra, podem
então ser detectadas por inspeção racional.
A mais importante relação entre as ideias é a de causa e
efeito. Esta categoria de relação nos leva para além de nossos sentidos, e nos
informa das existências e de objetos os quais não vemos nem sentimos. Por
exemplo, a previsão do resultado da colheita neste verão está além da nossa
experiência presente e, no entanto, raciocinando na relação de causa e efeito,
podemos dizer que o sol fará a plantação crescer e produzir. O sol é a causa
(tudo o mais permanecendo favorável) e a boa safra o efeito.
Efetivamente, se uma coisa ocorre, outra coisa que esteja
necessariamente ligada a ela como um efeito deverá ocorrer também. Porém, nada
existe que garanta uma ligação necessária e não podemos estabelecer conexão necessária entre o que
existe e o que não existe, pois, no caso, a boa safra ainda não existe.
Portanto, causa e efeito apenas correspondem ao que é anterior e o que é
posterior em uma sucessão temporal, transformados erroneamente em elos de uma “vinculação necessária”. A conclusão é
que, não importando quanto constantemente os dois fatos aconteçam
sequencialmente, podemos sempre conceber a possibilidade de que o primeiro ocorra
sem o segundo, a causa se apresente, mas o efeito, não.
A ideia de causa, em nosso exemplo, vem do fato de que as
plantas nunca deixaram de produzir quando expostas ao sol, desde que os
nutrientes, temperatura, etc., continuem adequados. Consequentemente, relações
de causalidade ou associação lógica que são possíveis entre as ideias, não
podem ser tomadas como associações necessárias entre as impressões. Outro
exemplo: a ideia de movimento conduz à ideia de espaço e tempo por associação
lógica, não importando saber se existem ou não as realidades concretas
correspondentes (espaço e tempo verdadeiros). E é apenas nesse puro nível de
significados, sem relação com a experiência sensível, que é possível o
conhecimento demonstrativo, isto é, o
domínio da dedução lógica.
A lógica é apenas a demonstração dos domínios da matemática,
cujas verdades são evidentes por si mesmas, valendo como necessárias. É neste
domínio que estão as ideias de quantidade (por exemplo: cálculos de tempo e
espaço que não existem como coisas concretas). Quando vemos um copo cair, não
somente pensamos na sua quebra, mas “esperamos
e acreditamos” nela. Ou ainda, quando vemos o chão molhado, além de pensar
em chuva, acreditamos que tenha chovido.
Esta vinculação tida como lógica e necessária decorre, de um “sentimento de crença”, e não pode ser
tomado como inferência lógica válida.
Podemos perceber a crença como um tipo de vivacidade ou
clareza possuída por algum dos objetos imediatos da consciência, originalmente
por impressões e as simples imagens de memória delas. Como acontece de a nossa
noção de causa pertencer a certas ideias? Por associação! Esta é a essência da
inferência causal: o observador passa de uma impressão para a ideia
regularmente associada com ela. Nesse processo o aspecto de clareza e
vivacidade próprio da impressão “infecta”
a ideia!
As crenças naturais são propensões da natureza do homem... elas
não são possíveis de se obter, e não podem ser iluminadas, nem pela observação
empírica nem pela razão. Não existe evidência para elas e isso nos mostra
também que estamos inclinados a acreditar nelas e que é de bom senso e
sanidade, fazer assim. Entretanto, não podemos inferir a negação da crença, mas
sim da sua “evidência”.
Explicar psicologicamente a crença no princípio de
causalidade é recusar todo valor a esse princípio. De fato, não existe, na ideia
de causalidade, senão o peso do meu hábito e da minha expectativa. Espero
calmamente a ebulição da água que coloquei no fogo. Mas essa expectativa não
tem fundamento lógico-racional. Para onde tudo isso nos conduz? A que em todos
os princípios do conhecimento descobrimos as ilusões da imaginação e do hábito.
Até a unidade do eu - que se nos apresenta ingenuamente como uma evidência - é
ilusória. É também a imaginação que identifica o eu com o que ele possui ou,
como dizemos, “o ser e o ter”.
Em resumo, nós temos lembranças, ideias e sonhos do mesmo
modo que tenho esta roupa ou esta casa. É simplesmente a imaginação, hábil em
mascarar a descontinuidade de todas as coisas, que facilmente desliza de um
estado psíquico a outro e constrói o mito da personalidade. Pois, ou eu sou
meus "estados" e minhas "qualidades" e não sou eu mesmo, ou
então sou eu mesmo e nada mais além de um vazio formal...
(Edited)
Aceitando a boa ilustração proposta pelo ermão! (rs)
There is no spoon.
ResponderExcluireu sou meus "estados" e minhas "qualidades" mas não desito nunca de ser eu mesmo ... vai entender né?
ResponderExcluirbeijão