domingo, 31 de agosto de 2014

Às Cegas



Estudos “duplo-cegos” são ensaios clínicos realizados em seres humanos, cujo propósito é o de averiguar a eficácia de um medicamento/tratamento em determinada patologia. Sua característica principal (e que define a sua “cientificidade”) é que, nem os sujeitos testados (o “objeto” de estudo), nem os sujeitos testadores (os médicos e/ou pesquisadores) sabem o que está sendo utilizado como substância de teste no estudo. Em geral temos 2 grupos: um que recebe o medicamento com a substância ativa que se quer testar e outro que recebe uma substância inerte... o placebo.

O escopo dessa forma de fazer ciência reside na exclusão de qualquer traço de subjetividade que pudesse acontecer (especialmente a que poderia existir na relação médico/paciente), para “garantir” a eficácia terapêutica de determinado medicamento/tratamento. Com o passar do tempo, e para se corrigir possíveis interferências da equipe (fragilidades científicas? rs) que avalia as estatísticas resultantes dos estudos, foram configurados os estudos “triplo-cegos”. Sua peculiaridade consiste em “agregar” ao estudo a ausência de conhecimento também por parte da equipe estatística que realizará a análise e que receberá os dados apenas como tratamento A e tratamento B.

Pergunta: a medicina que “exclui” a subjetividade da relação médico/paciente passa a ser, automaticamente, mais curativa? Ou ainda: o objetivo da medicina é curar, ou apenas saber sobre os efeitos de determinado medicamento/tratamento? Ou um pouco mais (rs): qual o medo do “efeito” da figura do médico no processo curativo? Quem tem esse medo?

Esse foi o tema de minha aula de ontem. Pela primeira vez as discussões tomaram mais tempo que a minha exposição. Interessante que, mesmo em uma turma que, em tese, pratica uma medicina mais “humanista”, o tema subjetividade parece ter um peso significativo, enquanto fragilidade científica. Aliás, os mais “espertinhos” (rs) quiseram ressaltar que as aulas precedentes discutiam justamente sobre a interferência negativa da subjetividade nos critérios científicos. Eles não haviam percebido que tínhamos mudado de foco: da ciência que “descreve e informa”, para a que cura. E, mesmo sobre o conceito de subjetividade que, no que se refere ao ato de curar, diz respeito à relação fundamental que se estabelece entre o médico/curador e o paciente que sofre.

Como é difícil demonstrar para quem, depois de anos de “treinamento” em fórmulas e conceitos objetivantes da medicina, que é sempre de um modo bastante artificial que dispersamos a doença em sintomas ou a abstraímos daquele que sofre, o doente. O que é um sintoma, sem contexto, ou um pano de fundo? O que é uma complicação, separada daquilo que ela complica? Quando classificamos como patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um sujeito. E essa “totalidade” só se torna acessível na medida em que o médico, transmutado em curador, consegue, mesmo que levemente, penetrar na história e na “alma” do seu paciente.

A medicina só existe porque há pessoas que se sentem doentes! E que “acreditam” que alguém, o médico, tem o poder de aliviar as suas aflições. O doente é que concede esse “poder de cura” ao médico, não o conhecimento prévio deste! A medicina que cura, então, não deve ser entendida apenas como um conjunto de procedimentos científicos criados para informar aos indivíduos que eles estão doentes, ou como estão doentes. É na relação que se estabelece entre o médico e o paciente que a cura deve ser encontrada... por ambos!

Essa discussão continuou no almoço que, gentilmente, me foi presenteado... como adoro meus amiguinhos de branco! (rs)


2 comentários:

  1. Putz! q maravilha de post filosófico ... que devate rico ... parabéns ...

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  2. Uia.... queria ter visto essa aula, alias... imagino que as aulas devam render bastante pela "amostra gratis" que eu já tive. Interessante como as pessoas só sabem trabalhar nos extremos, não?! Tudo precisa ser de uma dualidade... é bom, não é bom, ajuda/não ajuda e por ai vai.

    Abração e boa semana!

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