quinta-feira, 23 de julho de 2015

Um Pouco Sobre o Normal e a Patologização do Ismo

Acho no mínimo interessante (ou é engraçado?) essa discussão sobre o que seria mais “correto” em termos de denominação conceitual: homossexualidade, ou homossexualismo. Entendo a carga, digamos, patologizante (esse povo de branco, que adora impor conceitos), que vem associada ao sufixo “ismo”. O que, se pensarmos bem, não quer dizer muita coisa, dado que o uso, per se, desse sufixo, não é condição, a priori, de estarmos falando sempre sobre doença. Vide impressionismo, cristianismo, automobilismo, jornalismo, etc. Mas, relevemos tudo isso, mesmo porque não é sobre isso que quero falar.

Eu poderia começar pela pergunta: o que é doença? Melhor não; seria maldade demais, visto que esta questão, apesar de ser a mais fundamental para a medicina, é a mais controversa e a de menor consenso. Talvez uma pergunta (a partir de um exemplo) mais fácil: alcoolismo é doença? Acredito que a resposta, mesmo para não médicos, seja bem consensual: sim. Eu, entretanto, responderia: depende. Lembrando que estou me lixando para a palavra, devidamente sufixada pelo fatídico ismo. Vamos ver se consigo me fazer entender (nos últimos tempos isso anda bem difícil - talvez por um problema só meu, em decorrência da minha fase da PVC, rs).

Um grande médico e filósofo, Georges Canguilhem, disse o seguinte: “Saúde não é a ausência da doença. Ter saúde é poder se dar ao luxo de ficar doente! Ambas, a saúde e a doença, situam-se no campo da normalidade, pois não há vida sem norma”. Traduzindo (rs): todo ser vivo, enquanto em interação entre os componentes/sistemas externos que o cercam (ambiente, família, escola, emprego, etc.) e os internos (físico, psíquico, emocional, etc.) está constantemente “produzindo normas”, ou seja, reagindo, se adaptando, encontrando atalhos, se reconstruindo, etc. E nesse processo, que é exatamente a vida, ele se confrontará, necessariamente, com momentos de instabilidade, de desregulação... de diminuição da tal produção de normas. E isso é algo absolutamente normal, pois faz parte do jogo que chamamos vida.

Um exemplo (citado pelo próprio Canguilhem) para ilustrar: você toma algo gelado, uma bebida, um sorvete e, eventualmente, fica com a garganta inflamada. Após um ou dois dias, os sintomas desaparecem e você se sente curado. Isso tem um significado: você é uma pessoa com saúde, pois foi capaz de, em confronto com uma instabilidade (a inflamação), criar meios (normas), que o fizeram enfrentar e solucionar esse problema. Indo um pouco além: você é normal (normativo), dado que você podia enfrentar a instabilidade/doença, antes mesmo de ter se visto em confronto com essa situação.

Por outro lado, se você é o tipo de pessoa que não pode, de forma alguma, tomar algo gelado ou fazer qualquer outra coisa do gênero, fora de um “padrão muito rígido de comportamento” (pois isso acarretaria, certamente, no confronto de alguma instabilidade de difícil solução), então você é doente, independente e anterior a qualquer coisa/fato localizado fora do seu rígido padrão (no exemplo, o tomar algo gelado). Dá pra entender? É mais ou menos isso o que se quer expressar com o famoso jargão: o que importa é o doente e não a doença. Canguilhem reforçaria: não existe uma “entidade” chamada doença; quem produz a doença é o doente, esse ser restrito em sua capacidade de produzir novas normas de vida.

Voltemos ao álcool (o do texto, não o “real”, pois eu sou um bom exemplo de incapacidade em criar normas frente ao dito cujo, rs): só é alcoólico (o povo de AA não gosta da palavrinha “alcoólatra”... idiossincrasias, quem não as tem!) aquele que tem a constituição, a predisposição a sê-lo. Em tom de piada poderíamos dizer que só é alcoólico quem pode, não quem quer. Idem para a cirrose hepática (no que já está comprovado por vários estudos recentes): não é o álcool que provoca a cirrose, mas o inverso. Não é muito fácil de explicar isso e nem é meu objetivo, mas, tá dando pra entender a minha intenção em tocar nesses pontos?

Pra fechar o assunto: ser homossexual é patológico? Dá pra prever o que eu penso, por tudo o que expus acima?

PS: Esse post é quase um adendo ao anterior (rs).




4 comentários:

  1. Grande texto grande texto! Eu tb sempre achei um certo exagero o policiamento do "Homossexualismo", mas acabei adotando o mesmo discurso! Sempre corrigindo e ensinando! Mas ai fiquei meio confuso com a analogia ao alcoolismo, onde vc diss que só é ALCOOLATRA tem quer , ou seja, a quemo alcool afeta...

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  2. Sua fase PVC fez doer meu córtex frontal....rsrs
    Pelo que consegui entender ( ando numa fase meio lenta e por isso mesmo já vou pedindo desculpas se errar na interpretação do texto!! ) segundo seu texto a definição de DOENTE ( porque segundo Canguilhem não existe doença ) seria a capacidade ou incapacidade de manter a homeostase. Só poderia ser considerado doente aquilo/aquele que não consegue manter o padrão de equilíbrio homeostático tanto físico, psíquico e relacional ( se é que isso é possível dado as milhares de variáveis dessa trindade! ). Se eu acertei na interpretação eu concordo completamente com você : "ismos" e "dades" são sufixos que pouco importam e pouco retratam a realidade particular de cada ser humano!
    Vou ali tomar uma aspirina!

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  3. Eu diria que vocês chegaram perto! (rs) Mesmo sabendo que o conceito de homeostase é um pouco menos amplo do que aquilo que Canguilhem tem em mente ao desenvolver a sua teoria do normal e do patológico, aceitemos que fosse isso, até para efeitos didáticos. Mesmo assim, ele não se restringiria a “manter” a homeostase, mas muito mais a, dado um desequilíbrio, ou desregulação, ter a capacidade de, retornar ao anterior ponto de equilíbrio, ou ainda se adaptar funcional e organicamente a um novo ponto. Em síntese é isso.

    Outro aspecto: ele não diz que a doença não existe. Na verdade, ela não existe enquanto “entidade autônoma”, ou melhor, ela não é algo externo, tipo “que se pega” (como as tradicionais frases querem crer, tipo peguei uma gripe, peguei uma pneumonia, entende?). Quando ele diz que o organismo “produz” a doença é no sentido de que ela (a doença, enquanto processo) é o resultado da própria ação desse organismo frente a “agressões” externas, ou internas. O organismo se desequilibra e, ao procurar meios para voltar a se reequilibrar, acaba por gerar sintomas que, por associação, definem a doença. Assim, por exemplo, as febres, os vômitos, etc. São reações do organismo que podem levá-lo ao retorno ao seu equilíbrio original, ou a alcançar um novo patamar de equilíbrio, ou à perda efetiva de alguma função, ou mesmo à morte.

    O que eu quis esboçar pelo meu texto é que não podemos dizer, a priori, que o uso do álcool, mesmo que se considere esse uso de alguma forma abusiva – o que, no fundo, é bem difícil de quantificar – não é necessariamente uma doença. Quem “decide” se é doença, ou não, é o próprio indivíduo. Por isso citei a “piada”, só é alcoólico quem pode, não quem quer. Sendo mais fiel a Canguilhem: se o uso do álcool gerar normas restritas de vida, dependência, perda de funcionalidade, etc. (e tais efeitos não se manifestam em todos que fazem uso do álcool), temos aí a doença.

    Se seguirmos esse raciocínio, como hipótese de abordagem, com relação à homossexualidade, onde chegaríamos? Se a homossexualidade (lembrando que a sexualidade é apenas um dos muitos fatores que compõe o indivíduo) se configurar, para determinado indivíduo, como fator restritivo em sua capacidade de produzir normas de vida, poderíamos dizer que seria doentio? Ressaltando novamente: é óbvio que, per se (rs) a homossexualidade não é doença. Entretanto, quantas pessoas acabam por desenvolver problemas “normativos” graves, muitos a ponto de optarem pelo suicídio, o auge na restrição das normas de vida! Afinal, qual a função dos psicólogos ao “tratarem” dessas pessoas? Não seria auxilia-las a encontrar/resgatar sua normatividade “saudável”?

    Consegui ser um pouco mais entendível? (rs)

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    1. Obrigado.....Agora minha dor de cabeça sumiu! Você foi claro como um cristal!
      Alguns psicólogos da linha relacional acreditam, e eu incluso, que muito de uma doença existe pela identificação com ela! O indivíduo não existe sem o " sintoma" por não conseguir ter outra alternativa além da própria doença!
      Acho que Barlow, um grande psiquiatra, conseguiu definir a doença mental ( que pode ser aplicada a doença física ) de maneira bem singela: um sintoma que causa sofrimento à pessoa, aos que estão ao seu redor sem que exista a percepção desse sofrimento por ambos!

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