quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Suplício

“Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento...

... Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas...

... As dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis...  Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento... Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.

Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem, contudo, blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços... Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos.

Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha.

...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas.”


Extraído do livro “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, em que é reproduzida a conclusão dos autos do processo de execução de um criminoso, em Paris, no século XVIII.

Lembrei-me disso ao ver hoje um vídeo no FB... quase 3 mil “curtidas”, quase 10 mil compartilhamentos, mais de 5 mil comentários. Um jovem, baleado por policiais quando praticava um assalto, se esvai no meio da multidão e acaba morrendo, afogado no próprio sangue...

É, acho que sua morte teve mais espectadores do que a de Damiens... é o progresso dos nossos tempos!

PS: Pra quem tiver estômago...

4 comentários:

  1. Horror no passado!
    Horror no presente!
    Diferença entre as duas: O que era pontual tornou-se corriqueiro!
    bjs

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  2. O tempo é um ciclo...vai e volta, e infelizmente, parece que mais violento! Triste!

    Ps: Se nunca li o Focô até hoje ... não lerei mais!

    bjs

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  3. No melhor estilo Elis Regina, "ainda somos e vivemos como nossos pais"... eu as vezes me pego observando as pessoas... muitas vezes ao observar as reações ou "as sugestões" quando da prisão de determinados criminosos... me sinto novamente na Roma antiga... vendo a platéia torcer pela morte dolorosa e sangrenta daqueles que supostamente foram julgados.

    Esquecida a ideia de justiça é uma incoerência entre o discurso de punição e recuperação e as ações esperadas...

    Olha que eu sempre fui bom em fazer "relatório"... mas me senti intimidado pela "tio" ai...

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